Uma comparação inconveniente
Os esforços para respeitar os limites do passado têm se mostrado inúteis.
No início dos anos 1990, quando concebeu a hoje popular “lei de Godwin” – a ideia de que as discussões no ambiente virtual tendem, cedo ou tarde, a evocar comparações com o nazismo por uma ou ambas as partes –, o advogado Mike Godwin limitava o fenômeno aos fóruns de internet. Mas a escalada violenta de argumentos até esse ponto, que seria facilitada pelo anonimato permitido pela rede, parece ter superado as limitações virtuais.
O holocausto perpetrado pelos nazistas transformou-se, nas palavras do pensador alemão Andreas Huyssen, em um “lugar comum universal para os traumas históricos”. O que ele chama de globalização do discurso do holocausto funciona de duas formas: como lembrança, serve para confirmar um fracasso da civilização ocidental e do projeto iluminista. Mas quando utilizado como metáfora de comparação para outras histórias e memórias, sem relação com o evento original, seu uso acaba por ignorar ou menosprezar as situações particulares de cada tragédia.
Embora quase uma anedota de internet, a lei de Godwin acabou por funcionar como uma referência para o bom senso e uma régua para apontar os exageros e equívocos de se recorrer à situação mais extrema do século XX quando são analisados personagens e fatos de outra natureza. Traçar paralelos infelizes entre campos de concentração e medidas de quarentena, por exemplo.
Esse esforço de bom-senso, porém, parece ter perdido a utilidade nos últimos anos. Há pouca margem para evitar uma comparação quando as ações são deliberadas. Como evitar dizer o indizível se, no Brasil, o secretário da Cultura emula o discurso de Goebbels ao som de Wagner, ou se manifestantes nos Estados Unidos usam a frase “Arbeit Macht Frei” como argumento contra as regras de isolamento social? E se o órgão oficial de comunicação do governo federal brasileiro utiliza a mesma referência dias depois?
Mesmo com uma recorrência que ultrapassa o tolerável, há quem não veja problema na escolha e uso explícito desses símbolos de destruição, e opte pela passividade e pela recusa aos fatos. Neste caso, podemos encontrar similaridades com os moradores de Weimar, berço da primeira constituição da república da Alemanha. Construído em 1937, a cinco quilômetros da cidade, o campo de concentração de Buchenwald era de conhecimento dos moradores da região. Eles sabiam o que acontecia ali e faziam o possível para ignorar o cheiro, a fumaça e a visão da enorme estrutura construída para a morte. Ao final da guerra, em 1945, soldados americanos escolheram cerca de mil habitantes de Weimar e os levaram a pé, em grupos, até Buchenwald. O campo ainda contava com prisioneiros, e o passeio serviu para que aqueles, que achavam não ter qualquer responsabilidade sobre o que acontecia, fossem testemunhas das atrocidades cometidas na sua vizinhança.
A medida também buscava cortar pela raiz a eventual narrativa negacionista de que aquilo que havia ocorrido no seu quintal era uma invenção da propaganda adversária. A “banalidade do mal”, diagnosticada por Hannah Arendt nos oficiais nazistas de baixo escalão, que julgavam estar apenas “cumprindo ordens” e não se consideravam responsáveis por qualquer maldade, mostra na alienação dos moradores de Weimar variações ainda mais sutis.
Moradores de Weimar são levados a Buchenwald após a liberação do campo.
(crédito da imagem:
Buchenwald Memorial
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(crédito da imagem:
Em 2020, as táticas da cartilha do extremismo antidemocrático seguem as mesmas. A negação dos fatos, as narrativas para isentar líderes irresponsáveis e a transferência de culpa para inimigos internos ou externos chegaram antes mesmo da tragédia da pandemia do novo coronavírus alcançar seus números finais. Infelizmente, muitos corpos ainda serão contados. Mas não há como esperar responsabilidade ou arrependimento de quem tenta minimizar a tragédia fazendo questão de caminhar em meio a ela.
Muito bom, Ante! Esperando o próximo.