Previsões, aceleração e o “fim social” da epidemia
Historiadores tratam do passado, mas sempre são chamados para especular sobre o futuro
A pandemia trouxe à tona o Nostradamus dentro de cada um. Para amparar as profecias, alguns vídeos de YouTube e verbetes de Wikipedia bastam para aumentar exponencialmente o número de autoproclamados epidemiologistas, estatísticos, cientistas sociais e toda espécie de profissionais das diferentes áreas do conhecimento – que, mais do que nunca, deveriam ser realmente ouvidos, e não arbitrariamente emulados. A ansiedade é por saber quando tudo isso vai acabar, e como será o mundo depois da pandemia. Modelos, sugestões e epifanias não faltam. Os best-sellers midiáticos, dentro e fora do Brasil, são acionados para oferecer algumas perspectivas, mesmo que absolutamente vazias, baseadas na simples retórica. O desespero por alguma segurança e previsibilidade cria um terreno fértil para explicações esdrúxulas, poções mágicas improváveis e mais obscurantismo.
Levando em conta que a matéria prima do seu trabalho é o passado, é interessante notar que os historiadores estão entre os especialistas mais acionados para especular sobre o futuro. Existe um certo desconforto por parte dos profissionais da historiografia – ao menos os mais sérios – em fazer abertamente projeções sobre o futuro. Mas a expectativa de quem pergunta ao historiador sobre o futuro, e a relativa segurança deste em arriscar sobre o que está por vir, tem um fundamento, digamos, histórico, na fórmula da historia magistra vitae, a “história como mestra da vida”, registrada por Cícero – a ideia de que os exemplos do passado servem como referência e lição para o futuro.
Enquanto evitam esse caminho na produção do seu trabalho acadêmico, os historiadores eventualmente cedem à tentação da profecia quando chamados para tal. Porém, a própria história mostra que a tomada de exemplos do passado como bola de cristal tem suas limitações.
No momento atual, recorremos, por exemplo, às lembranças sobre a epidemia de gripe espanhola – cujas hipóteses de surgimento indicam diversas origens, mas dificilmente a Espanha, o que já serve de alerta sobre como narrativas históricas são poderosas. Embora o mundo, os deslocamentos migratórios e o conhecimento científico estivessem em outro patamar, a referência àquela pandemia nos serve ao menos em seus ensinamentos sanitários.
Os aspectos sociopolíticos do presente trazem uma margem ainda maior para especulações e, por consequência, para enormes equívocos em qualquer tipo de projeção. Enquanto o onipresente Karnal projeta um período de “grande alegria e felicidade”, e o pensador pop Zizek vê a possibilidade de um novo socialismo, o coreano Byung Chul-Han viraliza com sua visão de ascensão do totalitarismo, e o historiador austríaco Walter Scheidel aposta no aprofundamento da desigualdade social. Tão grande espectro de projeções nos dá o direito de concluir, com alguma certeza, que ninguém tem a menor ideia de como será o futuro.
Mais rápido, mas estagnado
Entre os exercícios de especulação sobre o futuro há alguma convergência na ideia de que crises “aceleram” a história. Yuval Harari, o historiador popstar desde seu best-seller Sapiens, também traz em sua análise a ideia de aceleração de processos históricos em meio às crises. Essa aparente obviedade carrega outro pressuposto que influencia a forma como cada indivíduo e as sociedades lidam com o tempo: a ideia de que a História é um processo provido de direção e sentido e, consequentemente, por um início e um fim – a esse “estudo dos fins” dá-se o nome de teleologia, assunto que será recorrente por aqui.
Já a ideia de aceleração é habilmente analisada pelo sociólogo alemão Hartmut Rosa. Desde a primeira ferrovia construída, a velocidade de deslocamento e a capacidade de comunicação humana só aumentou, até o limite da simultaneidade online que vivenciamos e aproveitamos nesses tempos de afastamento físico. Há décadas, somos capazes de atravessar o mundo em um dia, de falar com qualquer pessoa, em qualquer lugar, a qualquer momento. Não satisfeitos em realizar uma ação na maior velocidade possível, agregamos a ela outras atividades simultâneas.
Fica mais fácil entender como chegamos à situação atual. O descompasso, segundo a conceituação de Rosa, acontece quando nossa nova concepção de tempo social começa a conflitar com o tempo da natureza. A recuperação de uma floresta, da vida de um rio, pode exigir mais tempo do que gostaríamos para atender às nossas novas necessidades. O mesmo vale para a pressão que exercemos sobre comportamento do clima, alheios aos alertas da ciência, por exemplo. Da mesma forma, a ameaça de colapso social pela redução das atividades econômicas deixa evidente o descompasso entre o ritmo de existência das sociedades e sua capacidade, mesmo que muito otimizada pela tecnologia, de acelerar o “tempo da natureza” para a produção de uma vacina na velocidade considerada “necessária”.
Em uma experiência inédita para a humanidade, somos orientados a “parar”, mas conseguindo manter uma existência virtual ainda mais intensa, com um consumo de conteúdos e informações em volumes ainda maiores que os rotineiros. Tudo isso com os olhos voltados para o futuro, para o “depois da pandemia”. Estamos parados, mas tudo está andando ainda mais rápido. Nos sentimos exaustos. A cada dia temos novas previsões acerca de quando a epidemia chegará a seu pico, mas projeções conflitantes são mais um componente a frustrar nosso desejo por previsibilidade.
Um padrão repetido em outras epidemias remete aos diferentes desfechos que cada uma possui. Um deles é o seu “fim biológico”, quando o alastramento do vírus é controlado do ponto de vista epidemiológico conforme indicadores de saúde aceitos cientificamente. Outro desfecho remete à ideia de “fim social”, um diagnóstico mais subjetivo e sujeito às pressões sociais, políticas e existenciais do período em que a epidemia ocorre. O “fim social” acontece não pela aniquilação do vírus, mas por uma combinação entre o esgotamento da sociedade em seguir submetida a ele, uma resignação à nova situação e o encorajamento em conviver e enfrentar as condições impostas pela doença.
Desde o início da epidemia do novo coronavírus, mesmo antes do agravamento do cenário, a pressão para a manutenção ou retomada da “vida normal” sempre existiu. No mundo inteiro, não apenas no Brasil, a humanidade conseguiu transformar uma questão aparentemente superada – salvar vidas como prioridade – em disputa de narrativas políticas, com personagens heroicos, coadjuvantes lamentáveis e vilões persistentes. Tudo em um cenário internacional com roteiro escrito em surtos de até 280 caracteres.
A omissão de governos em garantir à sociedade essa possibilidade de paralisação sem ameaças à sua própria subsistência, torna a espera ainda mais aflitiva e desgastante – transformando em individual uma responsabilidade que poderia ser coletiva nas formas de lidar com a pandemia e suas consequências. Não causa surpresa, portanto, a pressa de muitos em “voltar à normalidade” em meio a uma situação que sequer completou seis meses. Esperar tanto tempo por uma cura, uma solução, torna-se inaceitável e absurdo para os padrões de vida aos quais nos acostumamos. O “fim social” da epidemia já está articulado.